quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Cheguei em casa

Para aqueles que têm um tanto de paciência. Um dos meus favoritos.


Fazia anos que não conversávamos.

Acordava de manhã, com aquele som do despertador de todos os dias. Abria os olhos, colocava o pé direito no chão, seguido do esquerdo: uma superstição que virara um hábito automático com o passar do tempo. ia ao banheiro, escovava os dentes, girava a torneira quente do chuveiro... Mais um dia... Enquanto isso, a ouvia bocejar no quarto, sonolenta, provavelmente pensando na mesma coisa... Mais um dia... A fumaça que saía do chuveiro embaçava o espelho, me embaçava, distorcia... Mais um dia.

Café da manhã; era como se estivéssemos sozinhos. Um ignorava a presença nula do outro. Aliás, lembrei-me da sua existência essa manhã, quando nossas mãos - não, não me atrevo a dizer que tanto, talvez apenas as pontas dos dedos -, no instante em que nós dois resolvemos pegar a manteiga, se tocaram levemente, numa fração de segundo que foi eterna.

Segurei sua mão, a puxei para junto de mim, beijei-a ardentemente. Um pedido de desculpas por todos esses anos de silêncio ecoava nos pensamentos... Essa imagem mental quase distorceu meu rosto num sorriso. Mas, em vez disso, simplesmente retirei a mão, como se nada tivesse acontecido. Respirei fundo, coloquei o pão sem manteiga na boca. Mastiguei-o sentindo seu gosto pela primeira vez em anos. Como era difícil, tudo isso. Engoli com alguma relutância, dei os laços nos sapatos e saí para a rua, como sempre.

A cada passo que dava, ficava mais sozinho. Por que será, isso?

Talvez porque quanto mais estou sozinho, mais eu me vicio em ser sozinho. Acho que a solidão sempre foi minha companheira, me deu seu abraço carinhoso quando mais precisei, quando ela me negou. Não sei se houve uma briga. Não sei se houve lágrimas. Procurei nas profundezas da minha memória quando foi que tudo isso começou. A solidão me apresentou e me ensinou algo que eu nunca havia percebido antes. Silêncio. O sol batia numa grade, cujos desenhos eram de um gosto muito particular. Sua sombra seguia a linha da calçada.

Cheguei em casa, cumprimentei-a, dando um rápido beijo em seus lábios, como fizera até então. "Te amo". Quando que o sujeito saiu da frase? "Também." Também o quê? "Espero que teu dia tenha sido bom".

Cheguei em casa, cumprimentei-a, dando um rápido beijo em seus lábios. "Espero que teu dia tenha sido bom". Pior agora...

Cheguei em casa, cumprimentei-a. "Espero que teu dia tenha sido bom".

Cheguei em casa, cumprimentei-a.

Cheguei em casa.

A sombra da grade já estava longe da linha da calçada. Anos em segundos. Continuei andando... Ela existia, afinal, vivia também aquela vidinha. Mas a solidão era cômoda. Tinha casa, dormia até que bem, comia bem. Uma vidinha de máquinas.

"Mas você não é só, você é casado". Minha mente, já levemente atordoada peso álcool, pensou o que há anos pensava. Era o que dava, falar com desconhecidos. "O oposto da solidão não é o 'estar juntos', mas a indimidade".

Era verdade. Quanto menos intimidade, mais sozinhos ficamos. Sem confiança, transformando a vida lentamente num sistema de engrenagens. Nada a fazer, nada a pensar. Talvez por orgulho, não tentamos reconquistar a intimidade.

Não tinha nada a ser feito, estaria fadado a ser só, para sempre...

Cheguei em casa.

Um comentário:

Anônimo disse...

Minha. Nossa.

Esse texto é simplesmente lindo.
Adorei.